Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) de 2022, cerca de 18,6 milhões dos brasileiros são considerados pessoas com deficiência (PCDs). Mesmo que sejam uma parcela considerável dos habitantes do país, ainda existe uma noção popular de não considerar a PCD como membro ativo da sociedade.
Com base em um entendimento de que a pessoa com deficiência seria alguém que precisa ser “consertado”, grande parte da população ainda acha que cabe a PCDs o papel de se adequar ao mundo. Contra essa premissa majoritária, desde a década de 1980 ganha força no mundo a ideia de inclusão social e a pressão pela adaptação da comunidade para que pessoas com deficiência assumam papéis ativos na sociedade.
Desde então, legislações mais próximas da inclusão social passaram a ser incentivadas pela Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de 1981, marcado como o Ano Internacional das Pessoas Deficientes (SIC). A cobrança de maior inserção de PCDs no cotidiano dos países foi consolidada com a assinatura da Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em 2006. Tal termo fez com que os países assinantes se comprometessem a criar regulamentações mais precisas e específicas para acessibilidade e inclusão. Na convenção, as nações concordaram em inserir em seu código de leis o entendimento de que as dificuldades enfrentadas por PCDs são causadas pela sociedade e não pela presença de alguma característica do cidadão.
Nacionalmente, os direitos das pessoas com deficiência previstos diretamente em lei eram poucos antes da assinatura da convenção em 2007. Até então, a Constituição de 1988, apelidada de Constituição Cidadã, citava apenas a proibição da discriminação contra PCDs e o dever do Estado em garantir saúde, reabilitação, proteção e assistência para o grupo, mas sem definir apontamentos específicos que os assegurassem. Mesmo que teoricamente a legislação já acomodasse os direitos humanos para todos, sem uma especificação para as barreiras enfrentadas por pessoas com deficiência, o acesso e reivindicação pela execução era difícil.
Baseado nesse entendimento, a conquista da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), em 2015, representou um marco legal para o reconhecimento brasileiro de que a garantia à cidadania de pessoas com deficiência exigia esforço para assegurar equidade ao grupo. O Estatuto foi criado como pré-requisito do decreto sobre a convenção da ONU, sancionado sete anos antes. Ele prevê a definição de leis básicas para a implementação dos direitos humanos de pessoas com deficiência.
A defensora pública-chefe da Defensoria Pública da União (DPU) no Recife, Nathalia Maciel, diz que percebe melhoras na garantia de acesso aos direitos de PCDs. Ela também declara que o novo Estatuto aumenta a pressão para que instituições, principalmente públicas, assegurem a inclusão social e os direitos de pessoas com deficiência. O secretário-geral da Comissão Nacional de Defesa de Direitos Autistas do Conselho Federal da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), Robson Menezes, afirma que a Lei Brasileira de Inclusão garante o aprimoramento da legislação brasileira ao englobar todas as principais regras sobre PCDs e inserir as noções mais modernas sobre acessibilidade e inclusão discutidas no mundo.
A LBI representaria um detalhamento do que precisa ser implementado e garantido pelas instituições públicas e privadas para assegurar os direitos humanos e a cidadania especificamente de PCDs. O direcionamento apresentado é de que as ações implementadas na sociedade prezem pela autonomia e independência do grupo. Entre os pontos de destaque da lei, está a afirmação no Artigo 06, no qual se aponta que “a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa”, além de prever protagonismo e participação das pessoas com deficiência tanto em pautas sobre acessibilidade, como em elementos que cabem a todos os cidadãos brasileiros.
O texto ressalta a necessidade de igualdade de oportunidades entre PCDs e pessoas sem deficiência. O código de lei também introduz a ideia de desenho universal, conceito no qual a criação de projetos em todos os âmbitos da sociedade devem ser pensados desde o início para garantir o máximo de acessibilidade possível, de forma a atender todos os públicos.
Segundo Robson Menezes, a LBI estaria próxima o suficiente de uma garantia plena dos direitos das pessoas com deficiência, o problema seria a falta de aplicação das normas. “Se o que está previsto na legislação fosse aplicado na prática, já estaríamos numa sociedade muito mais justa, acessível e equilibrada”, afirma o advogado. Mas, apesar do que consta nas regras do país, ainda existem poucas bases de implementação, principalmente em políticas públicas que regulamentem o acesso. Esta série de reportagens trará alguns dos exemplos de carência na garantia de direitos do Estatuto da Pessoa com Deficiência que marcam a cidade do Recife.
A LBI traz aspectos gerais de garantia, mas não providencia nem explica como esses direitos devem ser efetivados, o que faz com que leis e políticas precisem ser criadas individualmente. A falha se consolida nesses espaços. Com regras vagas e pouca previsão de punição, pessoas com deficiência apontam que, quando existe adaptação nos espaços públicos, essa é feita apenas para atender o mínimo necessário da exigência. Como o Estatuto não especifica uma norma técnica a ser seguida e solicita apenas que haja a tentativa de pelo menos uma “adaptação razoável”, não há garantia de que existirá acessibilidade plena para que uma pessoa com deficiência consiga exercer suas atividades com autonomia e independência.
O paratleta de natação Allan Jackson reclama que a maioria dos espaços tidos como acessíveis na cidade do Recife não são plenamente funcionais para diversas pessoas com deficiência. Ao citar o caso de um banheiro para PCDs, Allan afirma que espaços existentes em vários locais públicos não detêm adaptação suficiente para suprir as demandas de muitos. “Colocam aquela descarga convencional da tua casa que em cima da caixa tem um botãozinho. Se eu não tenho movimento nos meus dedos, como eu vou usar? Se a pessoa precisa lavar as mãos, como que eu vou abrir a torneira se houver uma torneira convencional? Tem que ser uma torneira acessível”, explica.
Além da falta de implementação, o desconhecimento sobre os próprios direitos das pessoas com deficiência ainda marcam o grupo. De 18 PCDs entrevistadas para esta série de reportagem, apenas quatro tinham amplo conhecimento sobre seus direitos e a legislação vigente. Desses, todos estavam em cargos de lideranças ou exerciam atividades vinculadas à luta PCD. A maioria tinha apenas conhecimento sobre temas relacionados aos direitos assistencialistas, como a Lei do Passe Livre ou o Benefício de Prestação Continuada (BPC), sendo o último o elemento mais procurado na DPU.
Nathalia diz que o desconhecimento sobre o assunto ocorre tanto pela falta de educação jurídica da população brasileira, como ainda pela baixa visibilidade sobre as pautas de pessoas com deficiência no próprio grupo. Com isso, o que continua majoritariamente no papel, tem pouco incentivo para sair dele, já que nem aqueles que seriam mais beneficiados com as mudanças sabem que podem reivindicar por essas garantias. Mesmo os que conhecem os direitos, e cobram por eles, enfrentam dificuldades para que suas demandas sejam atendidas.
Ação dos órgãos públicos
Na Prefeitura do Recife, o espaço para questionar e apresentar reivindicações sobre questões vinculadas à acessibilidade e inclusão é relativamente pequeno. A Gerência da Pessoa com Deficiência, agregada à Secretaria de Desenvolvimento Social, Direitos Humanos, Juventude e Políticas sobre Drogas é uma equipe pequena que precisa articular com todos os órgãos do Executivo Municipal como conselheira, em um papel de orientação, sem poder exigir grandes requisições ou executar maiores ações sozinhos.
O analista em acessibilidade e audiodescritor da Gerência da Pessoa com Deficiência, Michel Platini, por exemplo, detém um papel extenso no processo de melhorar a acessibilidade comunicacional da Prefeitura do Recife. Além de ter avaliado a melhoria do aplicativo e site do Conecta Recife para garantir 99% de acessibilidade ao portal, o publicitário com deficiência visual também trabalha para viabilizar o acesso a PCDs no Portal da Transparência, cria relatórios sobre as ações de comunicação do Executivo Municipal e avalia as audiodescrições nos materiais audiovisuais da cidade.
Com diversas funções e demandas para atender sozinho, Michel ainda não conseguiu trabalhar junto à Empresa Municipal de Informática (Emprel), empresa de tecnologia que gerencia as plataformas do município, para garantir a acessibilidade do site oficial da Prefeitura do Recife. Uma das chefes de visão da Gerência da Pessoa com Deficiência, Arenilda Duque, também explicou que cada site do Executivo é organizado por setores diferentes da Emprel, o que impede operações conjuntas em todos os espaços digitais da Prefeitura.
A preocupação com as ações municipais em relação às pessoas com deficiência vem do maior volume de membros do grupo no Recife. Segundo dados do PNAD Contínua de 2022, 11,1% dos recifenses com dois anos ou mais são PCDs. Esse índice torna a cidade a capital do país com maior proporção de pessoas com deficiência, contra a média brasileira de 8,9%. Mesmo que a cidade detenha essa especificidade, Robson Menezes afirma que não existem grandes distinções entre a legislação municipal do Recife e as demais do Brasil. Desde a implementação da LBI, a cidade insere as pautas de pessoas com deficiência em projetos que vinculem ao tema, mas ainda não detém um novo material atualizado para os parâmetros da Lei Brasileira de Inclusão.
Apesar disso, existem atividades da Prefeitura do Recife para publicação de um Plano Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência com os novos direcionamentos federais, mas as ações sobre esse material caminham lentamente. Desde junho de 2023 o texto está disponível para consulta pública no site do Conecta Recife, enquanto o documento que se propõe a reunir as principais normas e metas vinculadas à inclusão de PCDs no Recife afirma ser de outubro de 2022. A Minuta do Plano Municipal de Direitos da Pessoa com Deficiência, chamado de Plano Recife Mais Inclusivo, tem o objetivo de garantir a inclusão social das pessoas com deficiência na cidade do Recife.
Um dos principais diferenciais do texto é estabelecer metas específicas para os órgãos públicos, de forma a assegurar maior espaço de cobrança na implementação dessas ações. Para auxiliar nas reivindicações de pessoas com deficiência, uma das sugestões da minuta é criar um sistema de monitoramento de aplicação dos itens previstos. Como exemplo dessas propostas práticas e direcionadas estão:
- A criação de centros de referência em habilitação e reabilitação para atender pessoas com deficiência e Transtorno do Espectro Autista (TEA);
- Realização da primeira escola bilíngue em libras e português da Rede Municipal de Ensino do Recife;
- Divulgação, em formato acessível, de vagas de emprego para pessoas com deficiência.
Segundo o Gerente da Pessoa com Deficiência da Prefeitura do Recife, Paulo Fernando, o Plano deve ser publicado em 2024, mas ainda atravessará diversas etapas. Isso porque precisa passar pelos trâmites internos da Prefeitura. Por conta da presença de um ano eleitoral, Paulo Fernando afirma que “a expectativa é que no dia 3 de dezembro, Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, o plano possa ser lançado, vigorando a partir de janeiro de 2025”.
Enquanto o Plano não é implementado, a legislação vigente é a Política Municipal de Inclusão da Pessoa com Deficiência, de 2006. Apesar de antigo, comparado ao Estatuto da Pessoa com Deficiência, o material detém premissas atuais sobre igualdade de oportunidades e retirada de barreiras sociais para PCDs. Porém, assim como ocorre na LBI, o documento não especifica formas de assegurar o que exige nem apresenta metas detalhadas para atingir tais objetivos, aspectos que constam no novo Plano a ser implementado. Nesse contexto, mesmo que traga elementos de garantia da autonomia da cidade, o texto não prevê como fazê-los e até a criação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a Política Municipal de Inclusão não foi suficiente para atender as demandas das pessoas com deficiência.
Muitas das ações de órgãos municipais também estão embrenhadas em barreiras, como é o caso do Fundo Municipal da Pessoa com Deficiência. Apesar de sancionado em 2017 através da Lei nº 19.444/2017, o Fundo voltado para auxiliar na implementação de feitos inclusivistas ainda aguarda uma fonte de financiamento para ser regulamentado e devidamente aplicado. Arenilda explica que, como não existe um Fundo Nacional para área, há um impasse sobre de onde viria o dinheiro, o que faz com que não haja valores próprios para a temática.
Apesar dos impasses, Michel defende que as pessoas com deficiência continuem a reivindicar seus direitos e afirma que essa é a única maneira de mudar a situação na cidade. “Não adianta você perceber e não falar, e é o que muito acontece. Algumas pessoas veem que não tem [acessibilidade] e não falam, é preciso reclamar”.
consegui acessar pelo celular e achei tudo muito acessível parabéns por isto