Quando a cidade é o obstáculo

Homens fazem reforma em calçada. Veja mais no botão "long description"
Programa Calçada Legal tenta melhorar acessibilidade nas cidades do Recife. Foto: Daniel Tavarez/ Prefeitura do Recife

O Decreto-Lei nº 186 de 2008, que incorpora as normativas da Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (PCDs), define a deficiência como resultado da interação entre PCDs e as barreiras que impedem a participação desse grupo na sociedade. O entendimento da ONU incorporado na Constituição Brasileira contraria o senso comum, que exige da pessoa com deficiência uma adaptação ao ambiente e às atitudes da maioria. A partir dessa lógica, aqueles que conseguem se moldar suficientemente para vivenciar a comunidade nos parâmetros já pré-estabelecidos são vistos como exemplos de superação, enquanto os demais são taxados como incapazes. 

No Recife, uma dificuldade evidente para PCDs, mas também apontada por pessoas sem deficiência, é a de transitar pelas calçadas da cidade, marcadas por buracos, desníveis e obstáculos. “Quando a calçada é legal, tem árvore no meio ou está quebrada, não tem como. Literalmente, a gente tem que dividir a pista com os carros”, relata o paratleta Douglas Pena. Essa situação também prejudica pessoas com deficiência visual, que podem se machucar com problemas no trajeto. 

Para além desses pontos mais visíveis, a representação do que seria a ausência de acessibilidade para pessoas com deficiência é definida pela sociedade geral apenas como a falta de uma rampa ou elevador. Esses elementos são prejudiciais e presentes nas vivências de PCDs, mas a simples existência desses recursos não representa facilidade de acesso aos espaços

É comum que equipamentos urbanos não cumpram as especificações técnicas da Norma Brasileira (NBR) 9050, da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT). Tal NBR trata dos parâmetros de acessibilidade em edificações, espaços e equipamentos urbanos. Sem seguir essas regras, muitos aparelhos que deveriam viabilizar a autonomia das pessoas com deficiência não são eficientes. “Eles vão simplesmente cumprir aquilo que está no papel. E às vezes, por isso, não é exatamente aquilo que a gente queria ou aquilo que a gente realmente necessita”, diz o paratleta Carlos da Silva sobre a presença dessas estruturas ao longo da cidade do Recife. 

Até alguns recursos de acessibilidade usados não resolvem totalmente as limitações enfrentadas por PCDs. Muitas vezes, a presença de pisos táteis para pessoas cegas ou com baixa visão nas ruas da cidade não são eficientes por estarem apenas em pequenos trechos ou em locais com pouco espaço para passagem. “Já vi muitas situações em que essa trilha [do piso tátil] leva até uma parede, esbarra ali e acaba. Imagine você, pessoa com deficiência, precisando dessa trilha, quando chega, vê o sinal que acabou ali no chão, para onde você vai?”, diz o nadador com deficiência física Allan Jackson. Outro problema é a escassez de sinais sonoros que facilitem o trajeto de pessoas com deficiência visual nas vias do Recife.

A segunda secretária da diretoria executiva da Associação Pernambucana de Cegos (APEC), Luzia Santos afirma que transita com tranquilidade quando percorre rotas conhecidas, mas em áreas novas não se sente segura pela falta de um padrão de acessibilidade na cidade do Recife. Manoel Cavalcanti, presidente da Associação dos Deficientes Físicos (SIC) de Pernambuco (Adefepe) também passa por dificuldades ao circular pela cidade. Para chegar ao seu treino de basquete, por exemplo, Manoel tem dificuldade em encontrar ônibus acessíveis para sua cadeira de rodas. 

Situações do tipo fazem com que PCDs precisem se preparar para enfrentar problemas em seus trajetos ao longo da cidade ou verificarem o contexto de acessibilidade dos espaços, já que nunca se pressupõe que haverá as adaptações necessárias no Recife. “Eu estava vendo a parada de ônibus que vou descer e vou ter que atravessar, mas só que não tem acesso. Não tem acesso para mim”, afirmou o jogador de basquete em cadeira de rodas e membro da Adefepe, Adriano Araújo.

Sobre a questão do transporte público, a precariedade dos aparelhos, como a frequência de ônibus com elevadores defeituosos, faz com que muitas PCDs precisem de assistência constante para realizar atividades simples. “[Os ônibus] têm elevadores, mas muitos deles estão quebrados. Você, para sair de casa, tem que sair duas ou três horas antes, pegar com antecedência porque, caso contrário, você fica no meio da rua. Tem motorista que nem para [o ônibus para entrada no transporte]”, afirmou Manoel. 

Além de problemas técnicos, o preconceito é outro dos empecilhos no uso do transporte. Douglas e Adriano se queixaram sobre a frequência no qual os motoristas de ônibus não param para pessoas em cadeiras de rodas ou mentem que o elevador está quebrado para evitar ter atrasos no itinerário. “Quando vê que tem um cadeirante na parada, muitas vezes já aconteceu comigo de [o motorista] queimar a parada. Quando para, diz que o elevador está quebrado. E, às vezes, quando está com vontade mesmo, o elevador literalmente está quebrado”, lamenta Douglas.

Em resposta aos comentários da população com deficiência, o Consórcio Grande Recife, responsável pelo transporte público na Região Metropolitana do Recife, declarou que criou uma ação chamada “E se fosse você?” para sensibilizar motoristas de ônibus e usuários do Sistema de Transporte Público sobre as vivências de pessoas com deficiência e idosos nos ônibus. A ideia é melhorar o tratamento desses grupos no transporte ao colocar funcionários e passageiros sem deficiência em situações semelhantes às enfrentadas por PCDs e indivíduos acima de 60 anos. 

A nota do Grande Recife também pontua que todas as organizações que formam o consórcio precisam capacitar seus funcionários sobre a segurança e tratamento para PCDs e pessoas na terceira idade. Eles ainda relataram que disponibilizam dois espaços direcionados aos usuários de cadeiras de rodas nos ônibus e que 30% das frotas já detêm esse acréscimo. Tal ação teria sido movida por solicitações da sociedade civil. 

Usuários com deficiência podem apresentar reclamações sobre a situação nos transportes públicos presencialmente nos terminais integrados, através dos Conselhos Estadual e Municipal em Defesa das Pessoas com Deficiência, no Whatsapp ou nas redes sociais por meio da equipe do 0800 das empresas de ônibus, em que todos os funcionários do atendimento ao público são pessoas com deficiência. “Caso algum equipamento esteja avariado, é importante que o usuário comunique ao CTM Grande Recife a fim de que a empresa terceirizada que presta o serviço nos terminais seja demandada”, afirmou Marcos Petrônio, assessor de imprensa da Grande Recife. 

A partir desse contexto de dificuldade na mobilidade pela cidade e no uso do transporte público, muitas pessoas com deficiência física criam alternativas para facilitar a locomoção. Além das típicas cadeiras de rodas e muletas, diversas PCDs se utilizam de outros recursos, como bicicletas motorizadas e bikes adaptadas. Douglas, afirma que apenas com a troca da cadeira de rodas para bicicleta motorizada conseguiu transitar com facilidade no Recife. O paratleta também justifica a mudança ao relatar que estava cansado de passar por dificuldades com o uso do transporte público.

Porém, a utilização desses meios alternativos também podem gerar outras dificuldades às PCDs. Sem uma das pernas, Allan Jackson passa por problemas na interação com outras pessoas por utilizar uma bicicleta para se locomover. Como muitos indivíduos estão acostumados com a imagem de pessoas com deficiência física como figuras sentadas em cadeiras de rodas aguardando uma ajuda, existe dificuldade de compreender a diversidade e as especificidades dessa comunidade para conquistar autonomia. “Eu tenho dificuldade de acessar os lugares, principalmente os privados. E as pessoas me barram muito, porque dizem facilmente ‘bicicleta não é permitido’. A lei está para nos assistir, mas acima da lei tem a necessidade do outro. Por exemplo, a bicicleta, para todo mundo, vai ficar no bicicletário, certo? Exceto se a pessoa necessitar ir com a sua bicicleta até o devido lugar, que é o meu caso. Quando eu desmonto [da bicicleta] vou com o pé no chão, ela passa a ser apenas o meu meio de locomoção, como que fosse uma cadeira de rodas. As pessoas querem tirar esse direito de mim por estarem acostumadas a um padrão”. 

A criação de meios alternativos de locomoção representa um aspecto comum na vida de pessoas com deficiência no Recife. Com poucos recursos eficientes de acessibilidade na cidade, a maioria precisa se adaptar a um espaço hostil para conseguir vivenciar a capital pernambucana. Essa adaptação marca o entendimento majoritário na comunidade PCD, em que se vê como necessário viver pelas regras de pessoas sem deficiência para poder participar da sociedade. “Qualquer pessoa com deficiência tem que se adaptar à cidade, porque a cidade nunca se adapta a gente. Qualquer pessoa com deficiência precisa se ajustar para sobreviver”, afirma Douglas. 

A necessidade de ajustar-se aos padrões da maioria exige que pessoas com deficiência precisem usar o dobro do esforço para viver. Além do básico, PCDs também almejam por experienciar as riquezas do Recife e sua história, mas muitas vezes são impedidos pela falta de um desenho pensado para todos ou minimamente adaptado. O estudante de Publicidade na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Emanuell da Silva, que é uma pessoa com deficiência física, afirma que ser um recifense com deficiência é “viver uma cidade e lidar com uma beleza que é tão cruel, tão distante, mas, ao mesmo tempo, muito doce e acolhedora”. Em meio a essas barreiras, Emanuell declara que ter independência na capital pernambucana como pessoa com deficiência “é desafiar a cidade, romper uma barreira nova, um preconceito novo, todo dia se reinventar. Sair de casa diariamente lidando com as barreiras”. 

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