Direitos em Luta

Fernando Van der Lindem em sala de reunião. Veja mais no botão Long Description
Reunião da Comissão em defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB de Pernambuco. Foto: Cynara Maíra

Fernando Van der Linden, advogado e pessoa com deficiência física, está acostumado a lutar por mudanças nos espaços que ocupa como profissional. Apenas com sua participação na Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), ainda no início dos anos 2000, que a sede da organização em Pernambuco construiu uma íngreme rampa de acesso. Secretário e ex-presidente da Comissão em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência da OAB-PE, Fernando precisou enfrentar fóruns inacessíveis e a discriminação de colegas que desqualificam suas habilidades pela presença das muletas que utiliza para se locomover, enquanto lidava com impasses que dificultam a rotina de pessoas com deficiência (PCDs).

A experiência de Fernando é comum a várias PCDs na área judicial, com uma pequena porcentagem de pessoas com deficiência que conseguem crescer no setor. Dados do Diagnóstico das Pessoas com Deficiência no Poder Judiciário, produzido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021, apontam que apenas 1,67% dos trabalhadores do Judiciário são pessoas com deficiência (PCDs). Apesar da baixa representatividade, muitas PCDs dependem da Justiça para acessar seus direitos.

A Justiça, nesse contexto, assume um papel central nas reivindicações de pessoas com deficiência em casos vinculados com a aplicação das leis de inclusão, principalmente voltadas para educação e saúde. Com essa atuação, o âmbito judicial acaba por funcionar como um intermediador entre o direito e a prática das normas de enfrentamento às barreiras sociais.

Como um dos elementos essenciais para vida dos cidadãos, e um dos direitos garantidos por lei, o acesso à saúde é o principal ponto de reivindicação das pessoas com deficiência, tanto no âmbito público quanto privado. O advogado secretário-geral da Comissão Nacional de Defesa de Direitos Autistas da Organização dos Advogados do Brasil (OAB), Robson Menezes, afirma que atende principalmente situações sobre recusas de tratamento e acesso a medicamentos, principalmente por parte de planos de saúde. 

“As famílias se apertam horrores para conseguir pagar o mais básico possível do plano de saúde. Mesmo assim, eles ficam negando as terapias. A família precisa entrar na justiça para que obriguem o plano a fornecer esse tipo de atendimento”, afirma a assistente social Alice Brainer, da Associação dos Pais e Amigos dos Extraordinários (Apae).

As dificuldades na vivência de pessoas com deficiência vão além de problemas com direitos ao consumidor ou sobre o acesso aos benefícios sociais. Com um cotidiano ainda marcado pelas noções assistencialistas e capacitistas presentes na sociedade, muitas reivindicações judiciais de PCDs estão relacionadas com a experiência de viver com deficiência ou sobre violações dos direitos humanos em maior escala. Exigências vinculadas a essa temática são, por exemplo, de ações por maior acessibilidade nos ônibus intermunicipais ou na luta por modificações nas áreas urbanas, para garantir maior espaço de locomoção para pessoas que utilizam cadeiras de rodas. 

Apesar desse importante papel na garantia dos direitos das pessoas com deficiência, a Justiça também é um espaço marcado por barreiras para comunidade PCD. Até mesmo aqueles que concedem o acesso ao grupo, não cumprem devidamente os direitos previstos em lei.  Os problemas já iniciam na procura por auxílio jurídico, já que muitos espaços não estão preparados para atender pessoas com deficiência. Assim como ocorre no restante da sociedade, as dificuldades são diversas. Desde a falta de acessibilidade arquitetônica para pessoas com mobilidade reduzida ou baixa visão, até a impossibilidade de comunicação, com a escassez de intérpretes da Língua Brasileira de Sinais (Libras) em fóruns e nos primeiros contatos com advogados e defensores. 

Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua 2022, o rendimento médio das pessoas com deficiência é de R$ 1.860, 30% abaixo da média nacional de R$ 2.690. Com uma renda reduzida, muitas PCDs não têm condições de procurar ajuda judicial de maneira particular, o que aumenta a dependência do grupo com relação às defensorias públicas. Nesses espaços, os atendimentos oficiais só podem ocorrer presencialmente, dificultando o acesso de algumas pessoas com deficiência, tanto pela infraestrutura dos prédios como pela logística que envolve a locomoção de algumas PCDs. A recepção de pessoas com deficiência intelectual ou com autismo também pode dificultar o acesso às informações, pela falta de preparo e acolhimento que equipes jurídicas têm com esse público. 

A chefe da Defensoria Pública da União (DPU) do Recife, Nathália Maciel, afirma que o único treinamento dentro da DPU que trata do atendimento para pessoas com deficiência é uma formação facultativa sobre tratamento e sensibilidade. Também não há intérpretes de Libras para auxiliar na comunicação com pessoas surdas, o que dificulta o acesso desse grupo para pautas vinculadas com o âmbito federal. A Defensoria Pública do Estado de Pernambuco (DPE-PE), por outro lado, não realiza cursos específicos para atendimento ao público PCD, mas garante a tradução da Libras, presencialmente para Região Metropolitana do Recife e em forma de chamada de vídeo para as demais cidades de Pernambuco.

A presença de barreiras em defensorias públicas não é o único elemento que dificulta o cumprimento do Artigo 79 da Lei Brasileira de Inclusão (LBI), no qual está previsto que pessoas com deficiência devem ter acesso à justiça em igualdade de oportunidades com o restante da população. O subdefensor de causas coletivas da Defensoria Pública do Estado, Rafael Alcoforado, aponta que, apesar de perceber melhoras, o sistema judiciário ainda não está preparado para incluir devidamente PCDs. “É comum estar participando de uma audiência, e quando chega o momento de ouvir uma testemunha com deficiência, você vê que não há o preparo para aquilo. Às vezes tem que ser remarcado. Se ela [a pessoa com deficiência] não levar uma pessoa que possa fazer a tradução de Libras ou que possa ajudar na comunicação dela, o sistema não é preparado para receber. Especialmente quanto menor a comarca”, diz. 

A falta de preparo para participação de pessoas com deficiência em decisões judiciais também prejudica a possibilidade de uma decisão favorável às PCDs. Isso porque problemas na comunicação ou na presença dos envolvidos em audiências podem dificultar a percepção do juiz, ou do júri, sobre o lado defendido pela pessoa com deficiência, que poderá não ter o espaço ou ferramentas necessárias para esclarecer seu posicionamento.

O próprio capacitismo, tanto dos magistrados como de leis anteriores, tem a possibilidade de prejudicar o processo decisório. Com base nisso, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) recomenda que a interpretação das normas jurídicas considere a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Esse evento da Organização das Nações Unidas (ONU) propôs aos países-membros uma mudança no entendimento sobre as pessoas com deficiência, ao prezar pelos direitos humanos do grupo e os princípios de autonomia, independência e igualdade de oportunidades. Mesmo assim, o documento ainda enfrenta impasses para adentrar na sociedade pelo desconhecimento da população. 

O advogado Fernando Van der Lindem declara que a falta de acessibilidade em espaços de Justiça já lhe custou casos e constrangimentos. “ Várias vezes o juiz precisava descer do seu escritório porque [eu] não conseguia chegar lá, ou ele mudava a audiência para o térreo. Alguns nem percebiam, mas outros faziam questão de se desculpar pela situação nos fóruns”, diz Fernando.

Segundo o subdefensor Rafael Alcoforado, há no órgão cerca de cinco defensores com deficiência. Sobre a acessibilidade para esse grupo, a DPE sempre tenta adequar, prestando auxílio, mas sem ter todos os elementos que garantem a autonomia, como a presença do piso tátil, para pessoas com deficiência visual. O espaço se apoia na assistência aos profissionais PCDs, ainda na lógica de adaptação possível aos locais existentes. 

Esse cenário, para os próprios profissionais jurídicos com deficiência, explica o número reduzido de PCDs em cargos no Poder Judiciário. É difícil atuar e desenvolver-se em uma função cercada por barreiras. A presença desses impasses para os próprios funcionários da área demonstra o quão pior é a situação para o grupo de pessoas com deficiência que precisa recorrer a esses espaços, nos quais as dificuldades já podem estar na porta de entrada. 

Apesar disso, a representatividade de pessoas com deficiência nesses locais garante que a acessibilidade seja tratada como prioridade. Esse entendimento também influenciou o plenário do CNJ,  que aprovou em fevereiro de 2024 um ato normativo para assegurar uma cota e nota mínima diferenciada para pessoas com deficiência no Exame Nacional da Magistratura. O objetivo da ação é ampliar o número de juízes PCDs no país

A atuação de pessoas com deficiência na área jurídica poderá reforçar também iniciativas como a Comissão em Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que ocorre na OAB de Pernambuco. O grupo, composto por pessoas com deficiência, neurodivergências e aliados da causa, tenta facilitar o acesso das PCDs à Justiça, por meio de orientações para pessoas que procurem a comissão.  Os 22 advogados do grupo não atuam diretamente nas ações que chegam, por questões éticas da OAB, mas encaminham as pessoas para o Ministério Público ou uma Defensoria, já com um indicativo de como podem proceder sobre os problemas que enfrentam. 

A comissão da OAB também realiza palestras, eventos e encontros em locais públicos ou empresas para conscientizar sobre a necessidade da acessibilidade e os direitos da população PCD.

O que podemos melhorar?

Apesar de tantos problemas na área pública, com relação às garantias dos direitos das pessoas com deficiência, não existe uma resposta óbvia do que se pode fazer para assegurar melhorias nesse âmbito. Representantes de associações, membros de órgãos públicos e pessoas com deficiência de maneira geral sabem dizer o que falta e afirmam que a situação precisa mudar, mas não dizem como resolver os problemas de maneira ampla. 

Não há segredo sobre a garantia dos direitos para pessoas com deficiência, as regras existem, diariamente surgem novas metodologias e tecnologias assistivas para auxiliar nas adaptações necessárias para sociedade. O que falta é o entendimento de que a acessibilidade é uma questão de todos. Para essa noção entrar definitivamente na opinião pública, parece haver apenas duas respostas: educação e representação. 

Nathália afirma que a educação sobre os direitos PCDs é uma necessidade, já que a maioria do grupo não tem acesso às informações de maneira adequada e desconhece o que pode exigir dos entes públicos. Se a pessoa não sabe que aquelas barreiras são proibidas por lei, normalmente ela foca em tentar se adaptar, em vez de reivindicar mudanças. 

Ações de conscientização, mesmo que óbvias, também são importantes. Tanto pessoas com deficiência precisam saber que têm direito a uma vida diferente, como pessoas sem deficiência necessitam aprender a observar as barreiras existentes no cotidiano e entender o impacto delas para vida de diversas PCDs. Apenas com a educação do olhar sobre esse tema será possível pressionar de maneira permanente os entes públicos e privados por garantia de acessibilidade. 

Rafael Alcoforado afirma que há uma bolha de conhecimento sobre os direitos e vivências de pessoas com deficiência. Esse grupo seleto retém parte significativa das informações e conceitos sobre capacitismo, autonomia, princípios do desenho universal, etc. Até mesmo pessoas com deficiência pouco engajadas no tema desconhecem noções que visam assegurar maior respeito e qualidade para suas vidas. 

Furar essa bolha e compartilhar com o público esse assunto é uma etapa para garantia de melhor educação sobre o tema, mas não é apenas com campanhas publicitárias que isso seria garantido. É necessário aumentar a representatividade de pessoas com deficiência nos espaços sociais para que essas informações se disseminem e comece a ocorrer pressão por mudanças e expansão de serviços vinculados com pessoas com deficiência. 

O Governo Federal já criou um projeto que poderá financiar maior inclusão social no país. O Novo Viver Sem Limite, lançado em novembro de 2023, ainda não foi implementado em Pernambuco, mas poderá auxiliar na resolução da falta de recursos para a melhoria da inclusão social nas cidades. Até agosto de 2024, apenas cinco estados aderiram ao plano nacional, a primeira política pública em ampla escala sobre acessibilidade criada desde o lançamento da Lei Brasileira de Inclusão (LBI).

As mobilizações impactam nas melhorias para inclusão social, mas pessoas com deficiência reivindicam também maior participação na tomada de decisões sobre suas vidas, assim como prevê a LBI. O direito de ocupar esses espaços, de serem vistos e ouvidos, é um passo essencial para que a frase “Nada por nós, sem nós” deixe de ser um lema de luta PCD e se torne realidade.

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