O invisível também limita

Alunos se comunicam em Libras em escola do Recife. Veja mais no botão "Long description"
Salas de aula bilíngues no Recife. Foto: Andréa Rêgo Barros/Prefeitura do Recife

Muito além da noção padrão de acessibilidade a partir do aspecto arquitetônico, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, institui como responsabilidade do Estado e da sociedade geral assegurar às pessoas com deficiência os direitos básicos previstos a qualquer cidadão. Dentre diversos apontamentos, a LBI exige a garantia do acesso à educação, à profissionalização, ao trabalho e à comunicação; elementos fundamentais para vivência em comunidade. 

O Estatuto também apresenta como direito o “acesso a informações e disponibilização de recursos de comunicação acessíveis” para todas as PCDs. Apesar da temática ganhar mais espaço em meio digital ao longo dos anos, a situação ainda é precária, principalmente para população surda, que passa por barreiras na comunicação pela falta de compreensão da Língua Brasileira de Sinais (Libras).

Barreira da língua 

Criada por uma mãe ouvinte que sabia Libras, Beatriz Feldens, de 26 anos, demorou para se inserir na comunidade surda. Utilizadora de um aparelho auditivo, ela passou a maioria de sua vida apenas como praticante da oralização, ação em que pessoas surdas aprendem a utilizar a voz e fazer a leitura labial para se comunicar a uma língua falada, como o português. Com o início da graduação de Letras/Libras na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Beatriz passou a utilizar a Língua Brasileira de Sinais como forma majoritária de comunicação. Apenas com esse maior convívio e interação com outras pessoas surdas que a pedagoga passou a perceber o volume de barreiras passadas pelo grupo e entender os movimentos que fez na infância para se encaixar ao padrão ouvinte.

No Brasil, a falta de comunicação entre surdos e ouvintes é o padrão, inclusive em áreas do serviço público. Mesmo que o Decreto n.º 5.626/2005 sobre o uso da Libras preveja que os setores públicos tenham pelo menos 5% de capacitados na língua, pessoas surdas normalmente são negligenciadas nesses espaços.  A barreira gerada pelo descumprimento da norma afeta diretamente o acesso de pessoas surdas à saúde. O professor Antonio Carlos Cardoso, coordenador do Núcleo de Acessibilidade (Nace) da UFPE e membro da Associação Pernambucana de Surdos (ASSPE) declara que o acesso a serviços básicos de saúde é dificultoso para pessoas surdas. Isso porque a presença de profissionais que saibam a Libras é escasso nos hospitais do Recife e nem todas as pessoas desse grupo sabem o português escrito.

João Manoel, de 36 anos, aponta que, como pessoa surda, muitas vezes precisa escrever em um papel para se comunicar em espaços públicos e hospitais, o que dificulta uma interação completa com os médicos. Na Minuta do Plano Municipal da Pessoa com Deficiência, esse impasse foi notado. O documento ainda não implementado pela Prefeitura do Recife prevê a capacitação de dois profissionais por unidade básica de saúde para aprender a Libras. Com a implementação desse plano, está prevista a formação anual de 60 membros da rede municipal no uso da Língua Brasileira de Sinais.  

A baixa presença de intérpretes e do conhecimento da Libras por parte dos ouvintes, também afetou a produção da reportagem, já que apenas com a ajuda de uma tradutora foi possível realizar a comunicação com membros dessa comunidade. Caso essa mediação não fosse possível, o material não apresentaria o ponto de vista de pessoas surdas do Recife sobre a temática da acessibilidade e inclusão na cidade. 

Problemas na interação entre pessoas surdas e ouvintes também atrapalham o funcionamento da Associação de Surdos de Pernambuco.  Também diretora de finanças da ASSPE, Beatriz declara que a instituição tem dificuldades com sua própria equipe jurídica, já que nem os funcionários desse setor sabem a Língua Brasileira de Sinais, o que atrasa as ações do grupo. 

O meio digital e o aprimoramento das tecnologias assistivas realiza um papel fundamental nas melhorias desse contexto.  Houve melhoras na comunicação a partir da criação e aperfeiçoamento de Plataformas de Atendimento em Língua de Sinais e softwares de tradução automática para Libras, como o VLibras, sistema gratuito de interpretação simultânea dos conteúdos digitais. Mesmo assim, na área presencial, a escassez ainda é frequente, o que faz com que pessoas surdas ainda dependam do auxílio de familiares ou amigos para intermediar o acesso às informações. “A gente [pessoas surdas] se sente um peso”, declara João sobre precisar de ajuda para interagir com ouvintes.  

Tais obstáculos fazem com que João escolha os locais que irá comparecer, a depender se haverá falantes da Libras ou intérpretes no espaço, para poder se comunicar livremente e participar da socialização com autonomia. “Se eu vou para outro local, falta a informação, eu não vou entender ou outra pessoa não vai me intermediar, prefiro não ir. Mas se eu vou para outro espaço onde tem intérprete e eu vou saber que vou ter acesso à informação, isso me dá um conforto”, afirma. 

As marcas do capacitismo

Com a presença de tantos impasses, pessoas surdas sentem a necessidade de adaptar-se ao mundo ouvinte. Muitos membros dessa comunidade consideram que, sem que haja esforço da sociedade geral para manter a interação, existe uma exigência subentendida de que eles só poderão se comunicar se aprender a oralizar. Além da falta de adaptação dos espaços para incluir, também há um cenário de hostilidade, no qual a pessoa com deficiência é tratada como inconveniente, para as rotinas padrões. Justamente por conta dessa percepção, PCDs sofrem com desconfianças por parte de indivíduos que temem o uso dos direitos específicos para essa comunidade por pessoas sem deficiência. Tal situação afeta principalmente PCDs com deficiências invisíveis. 

Como pessoa com deficiência intelectual, Ivo Soares, de 50 anos,  sente que não recebe o tratamento adequado em órgãos públicos e privados por sua deficiência sempre ser posta em dúvida. “Quando a gente vai e se identifica que tem uma deficiência, principalmente intelectual, eles [as instituições] sempre ficam com o pé atrás. Quando nos identificam como uma pessoa com deficiência intelectual, aí sempre vem aquela barreira”. Para Ivo, além da desconfiança, tanto a população quanto as instituições, não reconhecem ou respeitam suas capacidades como pessoa. Esse preconceito velado também pode prejudicar o acesso a serviços públicos e a vagas de emprego. “Quando eu virei adulto e passei a ter responsabilidade, ter meu filho, a dificuldade ficou muito grande porque as pessoas acham que a gente não tem capacidade, a gente é tratado como coitadinho. Sempre ficam com o pé atrás daquilo que a gente vai poder fazer. As oportunidades são poucas”. 

A situação de Ivo não é única, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua de 2022, apenas 26,6% da população com deficiência com 14 anos ou mais está no mercado de trabalho, contra 60,7% do restante da sociedade brasileira. Tais dados representam também um vínculo com o aprendizado de pessoas com deficiência. O Pnad de 2022 demonstra que 19,5% das PCDs são analfabetas, enquanto 63,3% do grupo não tinham instrução ou completado o ensino fundamental. Além dos aspectos vinculados à falta de adaptação arquitetônica para pessoas com deficiência, ainda há outros empecilhos que prejudicam que esse grupo tenha acesso à educação. 

Problemas na educação

Muitas escolas tendem a dificultar o processo de matrícula de alunos PCDs e pessoas no Transtorno do Espectro Autista (TEA). As assistentes sociais da Associação dos Pais e Amigos dos Extraordinários (Apae), Alice Brainer e Rauana Hipolito, declaram que, quando os jovens são inseridos no ambiente escolar, as instituições tendem a negar o acompanhamento necessário ao transferir as responsabilidades para as famílias. 

Mesmo que a Lei nº 12.796/2013 sobre as bases e diretrizes da educação preveja que todas as crianças brasileiras estejam matriculadas na educação básica a partir dos quatro anos, muitos colégios negam a entrada de estudantes com deficiência ou TEA para não gastarem com acompanhantes ou adaptações do ambiente escolar que auxiliem PCDs nas atividades diárias.  “Eu tenho diversas famílias que não conseguem levar os filhos para o colégio porque não tem esse profissional e o filho está sem frequentar o colégio há mais de dois anos porque não tem quem fique com ele na escola”, pontua o advogado especialista na área, Robson Menezes.

Quando conseguem entrar em instituições de ensino, a situação muitas vezes é precária. Com poucos profissionais capacitados no ensino de pessoas com deficiência intelectual e neurodivergentes, o isolamento e preconceito são o padrão. Alice Brainer e Rauana Hipolito afirmam que, por conta da alta demanda, muitas escolas do Recife sobrecarregam acompanhantes para auxiliarem de três a quatro alunos ao mesmo tempo.  As consequências desse cenário são problemas na formação para essa parte da sociedade. A nadadora de 38 anos com deficiência intelectual Danielle dos Santos era ridicularizada na escola e, por conta da falta de acolhimento e de metodologia adequada para ensiná-la, ainda tenta aprender a ler. 

Mesmo que ainda haja impasses nesse setor, o subdefensor de causas coletivas da Defensoria Pública do Estado de Pernambuco (DPE), Rafael Alcoforado, declara que percebe melhoras na presença de acompanhantes nas instituições públicas de ensino do Recife. “Ainda existem escolas que têm dificuldade de garantir o acompanhante, mas a gente nota que tem havido uma melhoria no atendimento dessa demanda com o passar dos anos”, cita. 

Ainda sobre a falta de abordagem registrada para educação inclusiva, uma situação semelhante ocorre com a população surda. Formada em um curso de licenciatura, Beatriz da ASSPE diz que as metodologias de ensino são baseadas no aprendizado ouvinte, sem haver técnicas registradas para educação de alunos surdos. Também não são todos os estudantes surdos que acessam o ensino bilíngue nas instituições públicas. “Muitos alunos ainda estão em salas, mas sem a presença do intérprete. São salas ditas inclusivas, mas que falta o profissional ali [o intérprete], base para comunicação entre o aluno surdo, os demais estudantes e o professor”, afirma o professor Antonio, coordenador do Nace. 

A reportagem contatou a Gerência da Educação Especial da Prefeitura do Recife para entender como funciona a estrutura da rede municipal em relação aos estudantes com deficiência. O órgão prometeu um retorno sobre os questionamentos, mas não apresentou respostas.

A educação em nível superior 

A porcentagem de alunos com deficiência que entram e permanecem nas instituições de ensino piora quanto maior o nível de escolaridade. Segundo o Pnad Contínua de 2022  apenas 7% de PCDs detêm diploma de ensino superior. Sobre esse tema, o coordenador do Nace declara que o número de alunos com deficiência aumentou nos últimos anos, com mais de 600 estudantes na UFPE atualmente. Apesar disso, Antônio cita que “o maior desafio da universidade é o processo de permanência desse aluno”. 

O preconceito e barreiras pedagógicas na inclusão de PCDs no ensino superior ainda são questões comuns no setor. Não só faltam profissionais para auxiliar esse grupo de estudantes na universidade, como também muitos professores se recusam ou desconhecem como acessibilizar suas aulas para as especificidades daquele aluno. Antonio menciona que muitas coordenações e docentes deixam a adaptação a cargo do Nace, mas que essa responsabilidade é de toda universidade.

Para melhorar a conscientização dos profissionais da instituição, Antônio cita que todos os novos servidores da UFPE precisam passar por formações em que conheçam o Nace, seu propósito e os direitos das pessoas com deficiência. Porém,  essa apresentação ainda é recente, já que o núcleo de acessibilidade também é relativamente novo, com implementação a partir de 2014.

Muitas pessoas com deficiência já estão acostumadas com uma vida de luta e desconhecem outra perspectiva ou posição de si para o futuro. Em um cotidiano marcado por desafios que não deveriam ser necessários, vários demonstram  estarem cansados das narrativas de superação e partem da premissa de que se a sociedade cumprisse seus deveres, não haveria necessidade para heróis, muito menos estereótipos em que são definidos puramente pelas barreiras que enfrentam. 

Beatriz fala que pessoas sem deficiência preferem “ver a pessoa surda pela perspectiva da surdez, como se isso fosse um empecilho para vida e que isso fosse o limitante”. A visão de que pessoas com deficiência são os reflexos dos impasses que enfrentam na cidade é predominante na sociedade geral, que não analisa a mobilização interna necessária para construir uma vida com uma série de limitações impostas pelo mundo.

O consultor de acessibilidade da Prefeitura do Recife e membro da Associação Pernambucana de Cegos (APEC), Michel Platini, afirma que “ser uma pessoa com deficiência no Recife é todo dia você trabalhar a resiliência necessariamente, é escutar mil desculpas algumas vezes, sem que todas sejam sinceras. É você ser questionado da sua potencialidade enquanto trabalhador, enquanto pai, enquanto cidadão e ser negado coisas simples, como o direito de pagar uma conta, por exemplo”. 

Apesar dessa perspectiva negativa, Michel diz que esse cenário deve servir de energia para melhorar a situação para as próximas gerações de PCDs “eu estou em um momento histórico que preciso lutar para melhorar a cidade para as próximas gerações vivenciarem da melhor maneira possível a minha cidade. [precisamos ensinar que] o problema não é as pessoas com deficiência. O problema é a sociedade, que precisa aprimorar. E a gente tá aqui como seres de transformação dessa sociedade”.

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